quinta-feira, 4 de março de 2010

CARISMA

(notas da conferência proferida no Seminário Internacional Cristianismo, Filosofia, Educação e Arte IVFac. de Educação da Universidade de São Paulo, 11-9-02)

João Carlos Almeida

Diretor Geral da Faculdade Dehoniana-Taubaté

A edição da Revista VEJA nº 1764 de 14 de agosto de 2002 apresentou uma reportagem de capa inusitada: “E VOCÊ... TEM CARISMA?” O contexto que justificava aquela matéria era certamente o mecanismo que faz um candidato à presidência da república seduzir o eleitorado por meio de um certo charme pessoal que é popularmente chamado de carisma. Reconhece-se desde o início a dificuldade para descrever esta realidade tão íntima da pessoa humana. Porém, é fácil identificar nos grandes políticos, artistas e alguns líderes da humanidade uma altíssima dose de carisma. Seria este o segredo do sucesso para aqueles que querem vencer em nosso mundo do simulacro e da informação? Ao tentar explicar este fenômeno universal a matéria da VEJA não vai muito além das conclusões da pesquisadora americana Doe Lang, autora do livro “Os novos segredos do carisma – como descobrir e libertar seus poderes ocultos” (Editora Record). Esta autora é otimista ao defender que o “carisma” estaria ao alcance da maioria das pessoas. É mais um destes esforços no sentido de ajudar as pessoas a falar em público sem embaraço, ter bom desempenho em uma entrevista para emprego, fazer amigos ou simplesmente influenciar pessoas. Ao estudar a força do carisma entra em questão a razão do sucesso de Jesus Cristo, Pelé ou Airton Senna.

Resolvemos fazer uma meditação sob a forma de ensaio sobre este tema, aprofundando seus fundamentos antropológicos, pois julgamos que isto será de alguma utilidade no contexto da filosofia da educação. Esta tarefa de trazer as pessoas para fora de si mesmas (ex ducere) pode ter um aliado poderoso se descobrirmos o que é este fogo interior que garante uma identidade autêntica, original, magnética e sedutora.

A origem etimológica grega da palavra “carisma” está em torno do campo de significados de um “dom recebido do alto”. Pode ser um dom divino, uma graça, uma qualidade, uma força. Um dos textos clássicos da Bíblia é o Evangelho de Lucas no capítulo 1, versículos 30 e 31. O texto descreve um interessante diálogo entre a virgem Maria, metáfora da humanidade, e o anjo Gabriel, representante do céu, da divindade. A saudação do anjo é extremamente curiosa: “Salve, Maria, cheia de graça, o Senhor está contigo”. Esta palavra, “graça”, poderia ser também traduzida como “carisma”. Ficaria interessante dizer: “Salve, Maria, cheia de carisma...”. Alguns autores, como Leonardo Boff, preferem traduzir: “Salve, Maria, contemplada”. O carisma é traduzido aqui, inteligentemente por uma expressão ambígua que pode significar aquele que foi feito Templo, ou seja, morada de Deus. Mas pode ser também aquele que ganhou na loteria... foi contemplado. É um modo interessante de tentar expressar em palavras o misterioso significado do carisma. O texto bíblico diz ainda que Maria seria “cheia de carisma”, porque o Senhor estava com ela. Esta categoria da “presença” é muito interessante nas páginas da Bíblia. Moisés teve uma teofania semelhante diante da sarça ardente. Depois de muita conversa, Deus teria garantido para o profeta: vai, Eu estarei contigo (Êxodo, capítulo 3). O próprio nome de Deus revelado a Moisés poderia ser traduzido como “Eu sou aquele que estou”, ou seja, “presença”. Jesus Cristo no Evangelho de Mateus é anunciado como o Emmanuel, ou seja, “Deus Conosco”. No final deste mesmo Evangelho Jesus garante: “Estarei convosco todos os dias até o fim”. Este é um dos elementos do carisma: a presença de Deus na pessoa humana. Se fizéssemos uma leitura crítica da experiência fundamental do teólogo São Paulo, veríamos que no caminho de Damasco ele ouviu uma voz que disse: “Saulo, Saulo, por que me persegues?” Na verdade Saulo perseguia os discípulos e não o Mestre. Sua inteligência teológica o levou a concluir que o Mestre está presente no discípulo cristiformizando-o. Esta é a matriz de todo o pensamento Paulino que fundamentou a teologia sacramental até hoje vivida na Igreja Católica, que venera a presença de Cristo na Hóstia consagrada, na comunidade reunida em prece, no pobre, naquele que pelo batismo foi cristificado. Quem realiza esta transformação seria o Espírito Santo, que é o próprio Deus que habita no humano, como num templo. O Espírito é o próprio “carisma”, nesta leitura teológica. Viver a vida segundo o Espírito é encontrar a identidade maior em Jesus Cristo, sem perder sua originalidade criativa.

A cultura popular tem suas verdades preservadas em algumas expressões. A conexão entre presença e carisma aparece quando alguém diz: “Quando você vai nos dar o ar da graça?” É o mesmo que dizer: “Quando poderemos contar com a sua presença?” Presença é o mesmo que graça. Graça é o mesmo que carisma. Outra expressão popular interessante é: “Qual é mesmo a sua graça?” Que significa dizer: “Qual é mesmo o seu nome?” Graça é nome. Nome na cultura bíblica é o mesmo que identidade íntima... o mais verdadeiro de mim mesmo. Portanto a cultura popular acerta em gênero, número e caso, quando utiliza o termo graça, derivado de carisma para expressar a identidade pessoal: “Qual é mesmo o seu carisma, sua identidade, seu nome?” Precisamos aprofundar as teias de significado entre estas três categorias que conseguimos absorver dos paradigmas culturais condensados na síntese religiosa ou na linguagem popular: carisma, presença e identidade.

O que podemos concluir a partir da análise destas matrizes de pensamento é que o carisma não é um fato individual, mas relacional. Aqui será necessário um recuo teórico a uma possível antropologia da relacionalidade. Não é possível entender o carisma a partir de uma convicção do humano como totalizado na individualidade. O indivíduo, na verdade, é um mito da modernidade. Pleiteamos tanto a subjetividade, a liberdade, que esquecemos a relacionalidade que nos compõe. Sou presença real e consciente diante da totalidade real e consciente. Isto é perceptível pela minha coerência pessoal no tempo e no espaço, no pensamento e na produção de cultura e de lixo. Eu existo, ou melhor, co-existo. Mas a totalidade não é criada por mim. Ela co-existe também e tem uma coerência que ultrapassa a minha. Sua coerência não é presa ao tempo, mas alcança a eternidade; não é presa ao espaço, é infinita. Sou algo da totalidade em minha parcialidade. Sou porção auto-consciente da terra... sou humano. Por isso, é fundamental minha relação cósmica. Preciso estar presente diante das coisas. Preciso me relacionar com a folha de alface para ser totalmente eu. O avanço na consciência ecológica indica que somos um corpo em relação com a corporeidade total da água, terra, ar... Quem fere o corpo da nave terra machuca minha identidade pessoal. Esta consciência ecológica pode cair no desvio folclórico de perder a importância antropológica disto tudo e preocupar-se mais com o Mico-Leão-Dourado, do que com o pessoal da favela da Imigrantes que pegou fogo. Se conseguirmos promover esta cultura da solidariedade inteligente criaremos uma consciência de que a dor dos pobres dói em mim e que o câncer em meu estômago matará meus olhos. Por isso, a antrolopologia da relacionalidade aponta para uma cultura da solidariedade global. Somente sou em relação.

Mas onde fica o carisma nesta teia de relações? O carisma é justamente a liga da relação. É o que Tomás de Aquino chamaria de “processão” ao tentar explicar a lógica unitária-pural da Santíssima Trindade. Nem Deus é indivíduo monolítico. É relação. É Trindade. Mas é unidade pessoal. Porque pessoa é um ser pericorético. Ou seja, somos feitos de relações. Sou eu mais minha relação com a totalidade, com a materialidade, com a alteridade e com minha própria intimidade, que é um outro eu dentro de mim. Se fizermos as contar veremos que existe uma trindade nisto tudo. Somos imagem e semelhança da identidade divina enquanto nos relacionamos com a totalidade, alteridade e intimidade. Mas temos uma quarta relação, com a materilidade. Portanto, temos também uma quaternidade. Na simbologia dos números da Bíblia, três significa a divindade e quatro, o humano. A soma é sete, que significa a perfeição. É o número de Davi, ou de Jesus Cristo, dos sacramentos, dos dons do Espírito Santo, dos pecados capitais. São quatro as virtudes cardeais (quatro pontos da terra), e três as virtudes teologiais. Novamente a soma entre o humano e divino é sete. São sete os pedidos contidos na oração do pai-nosso, três pedidos para o céu, quatro para a terra. Nossa identidade de perfeição estaria na relacionalidade total.

A pergunta final é a mesma do início. Como desenvolver o potencial carismático? Vemos, hoje, muitos desvios de identidade. Existem muitos “clones” por aí. Há muita imitação barata. A lacuna de uma noção clara de solidariedade leva as pessoas a clonar na identidade de algum líder ou famoso de plantão. É incrível ver algumas pessoas religiosas abrir mão de sua identidade para imitar seu “guru”. Falam da mesma maneira. Gesticulam igual. É um grave desvio de relacionalidade e uma declaração de morte ao carisma pessoal. É claro que sempre existirão influências. Mas insistimos que o produto final de uma relacionalidade global bem conduzida é sempre a descoberta de uma identidade original, criativa.

Voltando à revista VEJA, ficamos muito surpresos com a matéria de capa da semana seguinte à reportagem sobre carisma: “Em busca do desejo”. As jornalistas mostravam a sua preocupação com o esfriamento dos relacionamentos sexuais em uma época de tanta liberdade. Parece que a falta de disciplina nas relações acaba matando o carisma. Morre também o desejo e diminuimiose o prazer. A identidade sairá gravemente ferida desta tragédia.

A educação deve criar condições facilitadoras para o desenvolvimento do carisma, da identidade, da relação. Aqui a nossa proposta passaria do foco antropológico para o pedagógico. Seria um tema muito interessante para um novo ensaio. Poderíamos pensar tranqüilamente em uma pedagogia da solidariedade. Esperamos em um futuro próximo poder oferecer esta reflexão não sob a forma de ensaio, mas de tese, após o necessário recuo da pesquisa. Grato

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